Recentemente,
Laurinda Alves escreveu um artigo num jornal sobre a necessidade imperativa de CALÇARMOS
OS SAPATOS UNS DOS OUTROS. Um artigo em que fala das dificuldades que as
pessoas com mobilidade reduzida ou altamente condicionada têm sempre que
pretendem deslocar-se em Lisboa. Especificou a urgência de nos sentarmos numa
cadeira de rodas e tentarmos perceber como vivem e o que sofrem todos aqueles que
se deslocam desta forma, dia após dia, durante vidas inteiras.
Porque
conhece muitas realidades, mas também devido ao artigo que escreveu, Laurinda foi
literalmente inundada por relatos brutais que testemunham as dificuldades que
este grupo de cidadãos enfrenta diariamente. Desses relatos houve um que ‘falou
mais alto’ e a impulsionou a escrever uma carta aberta ao Presidente Fernando Medina, com a esperança que não se perdesse nos labirintos administrativos mas, pelo contrário, que chegasse diretamente à sua secretária, vulgo ao
seu gabinete.
Caro
Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
"Neste
tempo de estaleiro e obras (…) validando o que de bem tem feito fazer nesta
cidade (…) peço-lhe que ouça estes e outros gritos, começo por transcrever o
testemunho de Carlos Nogueira, 49 anos, paraplégico desde os 14 meses:
“Certa noite, depois de cumprir a minha
jornada de trabalho e de assistir às aulas na universidade em regime pós
laboral, cheguei a casa (na minha anterior morada) por volta das 00h00. Estava
cansado e a desejar cair na cama para recuperar forças e repetir a dose no dia
seguinte. Chovia muito e ao chegar junto à porta do meu prédio verifico que
mais uma vez o lugar de estacionamento que me estava reservado pela Câmara Municipal
de Lisboa se encontrava ocupado. Acontece quase todos os dias, mas naquela
noite, como se não bastasse, tinha dois carros estacionados em frente, à
entrada do prédio, que, de tão próximos, apenas deixavam entre si espaço para
passar uma pessoa em pé.
Ora, a minha cadeira de rodas mede 60cm de
largura pelo que dei comigo a perceber que, se calhar, teria que ficar na rua
naquela noite em que chovia torrencialmente…
Liguei para a PSP da área, de onde me
responderam não ser possível fazer nada porque àquela hora não tinham reboques
disponíveis para resolver a situação e nem sequer foram autuar os infratores.
Chovia demais para isso, talvez.
Pensei ligar à minha irmã ou a um vizinho
para me ajudarem, mas entre os vários telefonemas para a PSP, passou mais de
hora e meia, já era tarde e achei que não devia incomodar pessoas que também
tinham compromissos no dia seguinte e a necessidade e o direito ao seu repouso.
Ali fiquei dentro do carro sem saber o que fazer, já com as lágrimas a correrem
cara abaixo…
Reagi e optei por ir estacionar o carro
longe de casa (onde encontrei lugar) e vir de cadeira de rodas, com a
dificuldade agravada de ter de andar num piso de calçada. Lá consegui chegar
junto da entrada do meu prédio completamente encharcado pela chuva e pelas
lágrimas que não parava de chorar. Ali chegado, ainda tinha que vencer um
último obstáculo: os dois carros estacionados em frente da porta.
De que forma o fiz? Da única possível:
desci da minha cadeira para o chão, rastejei entre os dois carros a tentar
nunca largar a cadeira de rodas, arrastando-a sempre comigo, depois consegui
encontrar maneira de a elevar de forma a conseguir passá-la, à força de braços,
por cima dos carros, tudo isto sempre debaixo de chuva intensa, até que
finalmente consegui voltar a sentar-me na cadeira. Acho que ninguém imagina o
esforço de ter de subir do chão para uma cadeira de rodas contando unicamente
com os braços.
Consegui finalmente entrar no prédio, com
a roupa suja e rasgada, ferido de uma raiva incomensurável. Naquele momento
senti que, para as autoridades do meu país, não passava de um número que só tem
peso na hora de ser chamado a honrar as suas responsabilidades perante um
estado que o ignora e lhe vira as costas todos os dias!”
O que
me faz escrever é isto, Senhor Presidente. É saber que episódios como este são
recorrentes, diários, numa cidade como Lisboa, onde cidadãos e autoridades nem
sempre cumprem os seus papéis. Uns porque insistem em estacionar os carros onde
não devem, outros porque aparentemente se esquecem de fiscalizar o que deviam.
Todos
os testemunhos que recebi me fizeram ligar de volta a quem enviou contactos,
mas também a outras pessoas com mobilidade reduzida que vivem apostadas em
tentar melhorar as condições de vida nesta cidade. A boa notícia é que todos
reconheceram que a cidade está muito melhor. Nos últimos anos aconteceram
coisas extraordinárias em Lisboa, muito para além da emblemática sucessão de
passadeiras rebaixadas, com piso táctil, no perímetro da Av. Alexandre
Herculano, que realmente permitem a cegos e a pessoas em cadeiras de rodas
circularem com mais conforto. Falo de passeios mais largos e caminhos
alternativos espalhados por vários pontos da cidade que já permitem ou vão
permitir que muitas pessoas os possam percorrer com mais conforto e liberdade.
Mas há
tanto por fazer, que não podemos descansar nem um segundo. As autoridades
camarárias têm absolutamente que vigiar melhor e multar mais as pessoas que
estacionam indevidamente nos lugares prioritários ou para deficientes. A EMEL,
que carrega consigo vários odiosos, tem que ser capaz de assegurar que ninguém
ocupa indevidamente estes espaços e, neste zelo, provar que é mais pelos
cidadãos do que contra eles. E mais, os passeios mal rebaixados têm que ser
milimetricamente revistos e rapidamente refeitos, pois como escrevi na crónica
anterior provocam quedas e fraturas expostas. À população em geral, mas acima
de tudo a pessoas para quem uma ferida facilmente se transforma em escara e
demora meses a cicatrizar. Meses de paralisia, frustração e desespero, como
deve imaginar.
Não
sei como nem quando acabarão todas estas obras em curso, mas à vista desarmada
estamos mais que a tempo de vistorias detalhadas para verificar se cumprem os
requisitos da livre acessibilidade. Pode garantir que isso acontece?
Quanto
a transportes públicos, Senhor Presidente, estamos ainda pior que os passeios e
as falsas rampas: no Metro os elevadores e escadas rolantes estão demasiadas
vezes avariados; nas ruas os autocarros chegam e partem, sucedendo-se durante
longas horas, sem terem condições para serem utilizados por pessoas em cadeira
de rodas, porque os sistemas de elevação estão invariavelmente estragados. Ou
seja, pessoas com necessidades especiais e sem carro próprio esperam e
desesperam diariamente no Metro e nas paragens de autocarro, sem saberem o que
fazer. Como A CP exige telefonemas diários e longos tempos ‘on hold’ para
marcar idas e voltas em cadeiras de rodas e os transportes alternativos para
deficientes também não chegam para as solicitações, tudo isto é altamente
erosivo e devastador.
Mais
coisas, Senhor Presidente? Os restaurantes! Os restaurantes baratos e caros que
já existem ou acabam de abrir portas e nunca têm rampas nem casas de banho
acessíveis. E os monumentos e edifícios públicos, sempre que se revelam
inacessíveis e fazem bradar aos céus. E o pavimento das ruas! Não tendo V.Exª
culpa nenhuma da calçada portuguesa que tanta beleza acrescenta a Lisboa, mas
também tantas dores de cabeça (e pernas e braços) dá a quem nela escorrega e
cai, acha que pode fazer o favor de atender às queixas mais que legítimas dos
cidadãos que não podem percorrer livremente zonas recém-recuperadas como a
Ribeira das Naus e outras, por ter sido ali colocado um piso altamente
trepidante (e inseguro até para motas, dadas as pedras arredondadas que marcam
o eixo da via) e não terem sido acautelados certos preceitos que
possibilitariam uma melhor circulação. Sei que sabe que a trepidação da calçada aumenta exponencialmente os espasmos, dores e desconfortos dos deficientes e,
por saber que sabe isso, fico um pouco mais descansada.
Termino
esta carta aberta, que para si já vai longa, mas para mim e certamente para
todos os que sofrem as vicissitudes de uma cidade de mobilidade difícil, ainda
só vai no início. E termino partilhando consigo, enquanto cidadã, as
responsabilidades que nos cabem. A uns, gritar, a outros amplificar esses
mesmos gritos e a outros tomarem as decisões certas para evitar mais
sofrimentos desnecessários"
Com base num artigo
“Boas
Noticias”
Complicado
Comprometa-se
com a CIDADANIA
Para o
Minuto Acessível,